Responsabilidade civil dos clubes de futebol em casos de acidente de trabalho de atletas profissionais.

A atividade do atleta profissional é regida pela Lei no 9.615/98 (Lei Pelé), que assegura ao atleta a condição de...

Por Bruno Gallucci em 4 de fevereiro de 2021

A atividade do atleta profissional é regida pela Lei no 9.615/98 (Lei Pelé), que assegura ao atleta a condição de empregado e segurado obrigatório da previdência social.

A Constituição da República Federativa do Brasil ampliou o conceito de direito constitucional do trabalho e assegurou a todos os trabalhadores o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, mediante normas de saúde, higiene e segurança, nos termos do inciso XXII de seu artigo 7o. Logo, esta previsão também é aplicada ao atleta profissional de futebol.

São frequentes as reclamações de jogadores que são submetidos a exercícios excessivos e exaurientes que comprometem o tecido muscular e facilitam a ocorrência de lesões.

Daí a necessidade de adoção de fixação de comandos legais voltados não apenas para a segurança do atleta, mas também para protegê-lo da tentação de esbanjar todo o fruto amealhado com o seu trabalho sem se preocupar com o futuro.

Dentro deste universo de medidas que visam assegurar uma tranquilidade para o atleta está a figura do seguro obrigatório, previsto no art. 45 da Lei Pelé, que é taxativo ao afirmar a obrigatoriedade da contratação pelo clube empregador, de seguro de vida e de acidentes pessoais, com o objetivo de cobrir os riscos a que eles estão sujeitos. Com efeito, trata-se de uma obrigação inafastável prevista na lex desportiva.

Os parágrafos primeiro e segundo do dispositivo legal apontam categoricamente que o clube empregador também será responsável pelas despesas médicas e dos medicamentos necessários ao restabelecimento do atleta até a efetivação do pagamento da indenização pela seguradora, o que demonstra o princípio protetivo e humanitário do referido dispositivo legal, na medida em que o não cumprimento imediato pela seguradora poderá resultar em sequelas irreversíveis àquele atleta que necessita de pronto atendimento.

A legislação previdenciária é aplicada ao atleta profissional que gozará dos benefícios nela previstos, como, por exemplo, o auxílio doença ou o auxílio acidente.

O acidente de trabalho está definido no caput do art. 19 da Lei no 8.213/91 e é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 2o desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte, ou a perda ou redução permanente ou temporária da capacidade para o trabalho.

Determina o art. 118 da Lei no 8.213/913, que “o segurado que sofreu acidente de trabalho tem garantida, pelo prazo mínimo de doze meses, a manutenção do seu contrato de trabalho na empresa, após a cessação do auxílio-doença acidentário, independentemente de percepção de auxílio-acidente”.

A possibilidade do atleta profissional sofrer acidente de trabalho me parece inquestionável. O jurista Sérgio Pinto Martins exemplifica casos típicos de acidentes de trabalho do atleta profissional, como, por exemplo, a distensão muscular, a fadiga muscular e o envelhecimento precoce4. Também podem ser assim consideradas as rupturas de ligamentos e as fraturas. Porém, no tocante ao reconhecimento da estabilidade provisória decorrente do acidente de trabalho existem dois fatores que devem ser levados em consideração.

O primeiro se refere à modalidade de contrato imposta ao atleta profissional. Em razão da determinação contida no art. 30 da Lei no 9.615/98, o tempo de duração do contrato não poderá ser inferior a três meses e nem superior a cinco anos. Logo, havendo prazo determinado, a estabilidade assegurada na legislação previdenciária não poderia superar o limite estabelecido na lei desportiva.

Além disso, outro ponto merecedor de destaque é a obrigatoriedade da contratação do seguro de vida e acidentes pessoais, cuja importância segurada deve garantir ao atleta profissional, ou ao beneficiário por ele indicado no contrato de seguro, o direito à indenização mínima correspondente ao valor anual da remuneração pactuada.

Na hipótese de ocorrência de acidente de trabalho, o clube é responsável pelo pagamento dos salários do atleta durante os 15 primeiros dias de afastamento e deverá emitir o Comunicado de Acidente de Trabalho (CAT), cabendo ao INSS o pagamento do benefício previdenciário, tendo em vista que os clubes contribuem com o percentual de 5% de sua arrecadação para a autarquia. Nesta hipótese, o contrato de trabalho fica suspenso e haverá a sua prorrogação quando do restabelecimento do atleta.

Via de regra, durante o período de suspensão do contrato de trabalho, o clube não tem o dever de pagar o salário do atleta enquanto ele estiver ausente. Contudo, na prática, geralmente os clubes pagam os salários, ou parte destes, pois a recuperação do atleta é acompanhada, geralmente, por médicos do próprio clube empregador.

Independentemente do benefício previdenciário a ser recebido pelo atleta, quando restar caracterizado o acidente de trabalho, poderá o jogador (ou o seu beneficiário), receber o pagamento do valor assegurado na apólice do seguro efetuado pela empresa.

Responsabilidade civil do clube empregador
Com efeito, duas são as teorias que definem a responsabilidade de indenizar civilmente o empregado que sofre algum dano no desempenho de seu trabalho. A saber: a Teoria da Responsabilidade Objetiva e a Teoria da Responsabilidade Subjetiva.

A primeira está amparada no art. 927, parágrafo único, do Código Civil, e dispõe que, mesmo ausente a conduta culposa ou dolosa por parte do empregador, havendo previsão legal para tanto, ou detendo a empresa atividade que pressuponha risco potencial à integridade física e psíquica do trabalhador, há, sim, a obrigação de reparar. Trata-se de de um avanço jurisprudencial que foi condensado no Código Civil de 2002.

A segunda defende que, para que surja a obrigação de indenizar, imprescindível se faz a presença do trinômio consubstanciado no evento danoso, nexo de causalidade entre este e a atividade laboral desenvolvida pelo empregado e, ainda, a existência de conduta ilícita (dolosa ou culposa) por parte do empregador.

Para ser considerada como atividade de risco, Cláudio Luiz Bueno de Godoy5 entende que esta deve ser intrinsecamente perigosa e que, por esta razão, seja capaz de suscitar a responsabilidade sem culpa de quem a exerce.

Todo ser humano está sujeito a lesões, de diferentes graus e sequelas, ocasionadas pelo simples fato de estar vivo, valendo aqui lembrar o dizer de Guimarães Rosa, em Grande Sertão Veredas: “Viver é muito perigoso”. Contudo, viver sujeito a determinado risco é ainda mais perigoso.

Com efeito, a prática do futebol, indubitavelmente, está inserida dentre aquelas modalidades esportivas que exigem elevados esforços físico e muscular.

Também são frequentes as mortes ocasionadas por problemas de saúde, sendo que a medicina preventiva poderia evitar que tragédias acontecessem em campo, como no fatídico e lamentável caso do jogador Serginho do São Caetano.

Mais recente foi o episódio do jogador italiano Piermario Morosini, de 25 anos, que veio a falecer após uma parada cardíaca em campo, o que demonstra que o risco é inerente à atividade, independentemente de onde é praticada.

No Distrito Federal e no Rio de Janeiro, por exemplo, existem leis locais que obrigam o exame médico dos praticantes de esportes, o que demonstra a preocupação do poder público com eles.

A própria Lei Pelé é taxativa em enumerar os deveres específicos que o atleta tem que cumprir, além daqueles deveres inerentes a qualquer contrato de trabalho. Assim dispõe o art. 35 da Lei no 9.615/98. Verbis:

Art. 35. São deveres do atleta profissional, em especial:
I – participar dos jogos, treinos, estágios e outras sessões preparatórias de competições com a aplicação e dedicação correspondentes às suas condições psicofísicas e técnicas;
II – preservar as condições físicas que lhes permitam participar das competições desportivas, submetendo-se aos exames médicos e tratamentos clínicos necessários à prática desportiva;
III – exercitar a atividade desportiva profissional de acordo com as regras da respectiva modalidade desportiva e as normas que regem a disciplina e a ética desportivas.

Essas regras, na visão de Jean Marcelo Mariano Oliveira8, demonstram todo o caráter especial do contrato de trabalho do atleta profissional de futebol, cujo sujeito passivo está obrigado a determinadas práticas sequer imagináveis para as demais formas laborais.

Com efeito, o atleta profissional, além dos deveres inseridos no dispositivo acima mencionado, também deve observar a obediência, a diligência e a fidelidade, esta última entendida como respeito ao caráter ético da relação contratual.

Para efetiva delimitação das hipóteses de insubordinação e indisciplina aplicáveis ao atleta profissional, imperiosa a análise dos aspectos que diferenciam o contrato de trabalho desportivo destacados por Álvaro Melo Filho9:

  • Aspectos desportivos (treinos, concentração, preparo físico, disciplina tática em campo);
  • Aspectos pessoais (alimentação balanceada, peso, horas de sono, limites à ingestão de álcool);
  • Aspectos íntimos (uso de medicamentos dopantes; comportamento sexual);
  • Aspectos convencionais (uso de brincos, vestimenta apropriada);
  • Aspectos disciplinares (ofensas físicas e verbais a árbitros, dirigentes, colegas, adversários e torcedores, ou recusa em participação em entrevistas após o jogo).

Portanto, os deveres do atleta profissional se projetam para muito além daquele período em que o jogador está à disposição do seu clube empregador, o que não ocorre com o trabalhador comum, sendo que tal característica é definida por José Affonso Dallegrave Neto10, como uma relação de hiper-subordinação entre o atleta e o clube empregador, na medida em que aquele se submete às estritas diretrizes deste, dentro e fora do campo, em jogos, treinos e sessões preparatórias, assumindo o compromiso de não apenas jogar, mas de se dedicar ao máximo possível.

Por outro lado, as entidades desportivas também devem obedecer determinadas obrigações que estão arroladas na legislação desportiva, mais especificamente no art. 34 da Lei Pelé. Verbis:

Art. 34. São deveres da entidade de prática desportiva empregadora, em especial:
I – registrar o contrato especial de trabalho desportivo do atleta profissional na entidade de administração da respectiva modalidade desportiva;
II – proporcionar aos atletas profissionais as condições necessárias à participação nas competições desportivas, treinos e outras atividades preparatórias ou instrumentais;
III – submeter os atletas profissionais aos exames médicos e clínicos necessários à prática desportiva.

Além de todo o risco físico a que o atleta é exposto, ainda existe uma forte pressão psicológica em razão da alta competitividade a que está submetida o jogador. Tanto o risco quanto a disputa são inerentes à própria profissão, tanto é que em uma bola “dividida” os jogadores devem ser agressivos (sem ser maldosos ou desleais) para obter sucesso naquela disputa. Neste momento, a possibilidade de uma lesão sequer passa pela cabeça do atleta, pois o mais importante é a conclusão da jogada.

Por fim, insta salientar que ao clube empregador é aplicada a disposição contida no art. 2o da CLT que conceitua empregador como a empresa que assume os riscos da atividade econômica; logo, é a própria Consolidação das Leis do Trabalho que está adotando a teoria da responsabilidade objetiva exatamente para a responsabilidade concernente aos danos sofridos pelo empregado em razão da simples execução do contrato de trabalho.

Os riscos a que são submetidos os atletas durante o período em que estão vinculados ao clube empregador estão presentes e são inerentes à própria prática desportiva, daí porque é possível se aplicar a teoria da responsabilidade objetiva ao clube empregador, na hipótese de ocorrência de acidente de trabalho; ainda mais quando não se fazem presentes aspectos objetivos como, por exemplo, ausência de contratação do seguro, nos termos do art. 45 da Lei Pelé, não observância dos deveres do atleta e do clube (artigos 34 e 35 da Lei Pelé), exigência de treino ou esforço excessivo, dentre outros. Exceção a esta regra seria na hipótese em que houvesse a culpa exclusiva do atleta, ou nos casos em que este tenha concorrido para a ocorrência do dano.

Bruno Gallucci

Advogado, especialista em direito do trabalho. Sócio do escritório Guimarães e Gallucci Advogados.

Bruno Gallucci Advogado

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